Com 21 capítulos exibidos até a noite da última quarta-feira, 22, a novela das 19 Horas, Sangue Bom - assinada por Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari, com direção de núcleo de Dênis Carvalho - não está sequer perto de cumprir seu objetivo mais simplório: recuperar a audiência do horário, que foi perdida por sua antecessora. Os números da novela, aliás, acompanham uma queda que preocupa, mesmo ainda estando em sua fase inicial. Porém, é preciso saber analisar tanto os números quanto a trama. O que parece claro é que o folhetim é muito complexo para ser exibida na TV aberta.
Uma análise assim é delicada e cheia de riscos para quem a faz, porém, parece o caminho certeiro ao se refletir tanto sobre a qualidade do produto que vai ao ar diariamente quanto aos números que não refletem aquilo que se vê na TV. Parece evidente que estamos diante de uma preciosidade em que roteiro, direção e elenco fluem livremente e formam um produto de qualidade rara, ainda assim, o telespectador parece não ter comprado a história e se interessado suficientemente para assisti-la todos os dias.
O grande entrave de Sangue Bom para a audiência é seu fio condutor. Segundo Vincent Villari, em ótima entrevista ao blog O Cabide Fala, o fio condutor da novela é "a história de Bento e Amora, dois jovens que se amam desde crianças, se separam e, quando se reencontram e percebem que pertencem a universos muito diferentes um passa a lutar para trazer o outro para o seu mundo". Com todo respeito ao autor que, óbvio conhece mais sua própria história que qualquer outro, o blog discorda. O fio condutor da novela me parece muito mais complexo que isso, remete muito mais ao poema Quadrilha, de Carlos Drummondd de Andrade: "João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém". E também parece ir além disso.
A complexidade de sentimentos e conflitos do sexteto de protagonistas - Bento (Marcos Pigossi), Amora (Sophie Charlotte), Maurício (Jayme Matarazzo), Giane (Isabelle Drummond), Malu (Fernanda Vasconcellos) e Fabinho (Humberto Carrão) - promove uma gama de análises e reflexões que o telespectador mais desatento não consegue perceber. Amor gosta de Bento ou de Maurício? Bento gosta de Amora ou da lembrança do passado? Bento se relaciona melhor com Malu ou com Giane? Giane é amiga ou gosta de Bento? Maurício ama realmente Amora ou é capricho? Malu e Maurício poderiam se apaixonar? Fabinho é tão mau quanto tenta ser? Giane usa o tom masculino como uma forma escudo? Estas são as questões mais óbvias e que, ainda assim, muitos não enxergam. Há muitas outras, ainda mais complexas, como a discussão entre fama e caráter, vingança e gratidão, o ter e o ser. Enfim, são muitas as perguntas que a trama propõe e o público não consegue lidar com a falta de respostas imediatas com que está acostumado no horário.
Uma novela das 19 horas ao pisar no drama normalmente não arrisca e não foge dos clichês. Os últimos grandes sucessos do horário mostram isso. Cheias de Charme tinha dramas simples de suas três protagonistas. Penha sofria com o marido folgado, Rosário sofria porque o namorado não aceitava sua fama e Cida sofria porque buscava o príncipe encantado. Tudo era muito claro na mente do telespectador. Assim também foi em Morde e Assopra, o grande marco da sofrível novela foi a amargura de Dulce, rejeitada pelo filho que se envergonhava de ser pobre. Tititi, remake assinado também por Maria Adelaide Amaral, o drama também era água com açúcar: Marcela, abandonada pelo namorado, tinha que criar uma criança sozinha e se apaixonava por um outro rapaz.
Sangue Bom pisa fundo na complexidade de seu drama e paga o preço. Ao inovar e propor muito mais que simples entretenimento, tentar levar ao público uma história que exige raciocínio, reflexão e construção de ideias, a novela afugenta o telespectador mediano - aquele que procura respostas e soluções rápidas, que quer entretenimento fácil e não enxerga novela como arte ou cultura. Rejeição semelhante sofreu Lado a Lado, uma novela que tentou acabar com o tom folhetinesco e transmitir cultura-histórica e foi totalmente rejeitada.
Se no drama a novela das 19 Horas afugenta o telespectador o mesmo acontece na comédia. Novamente a dupla de autores e sua equipe de roteiristas optou pelo caminho árduo e mais difícil. Fugindo do humor pastelão que normalmente faz sucesso no horário (vide Caras e Bocas) ou mesmo a comédia popular e infantil como a de Cheias de Charme, a proposta foi de apresentar muito do humor cult com metalinguagem, referências pops e frases de efeito. Piadas como "você quebrou uma garrafa na cabeça do Dênis Carvalho" "Claro, ele me convidou para interpretar uma atriz decadente numa novelinha das 7 de dois autores medíocres" são geniais, mas somente funcionam para uma parte pequena da audiência que sabem que Dênis Carvalho é o diretor de núcleo da novela e que a trama é escrita por Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari. A maioria do público ficou sem entender e, por isso, certamente estranhou. Esse é apenas um exemplo de uma gama gritante de piadas complexas demais para atingir o grande público e que, por isso, tornam-se elitizadas demais. Mesmo mal sofreu Tempos Modernos que foi rejeitada pelo simples fato de que suas piadas eram incompreensíveis. Em Tititi, Maria Adelaide Amaral já brincava com a metalinguagem, mas tinha seu escape no humor pastelão com os ataques de Jaqueline ou as brigas dos protagonistas.
Sangue Bom está longe de ser ruim, ao contrário, é uma novela ousada e de qualidade ímpar. Ao propôr uma reflexão mais ampla sobre seus protagonistas, o roteiro tenta instigar a audiência a pensar. E arte nada mais é que isso, a tentativa de levar a sociedade a pensar. Novela é entretenimento, mas pode ser tratado como arte, principalmente quando as pessoas envolvidas estão dispostas a pagar o preço para transmitir um pouco de qualidade para a população. O preço neste caso é comprometer os números de audiência em razão de um produto melhor acabado, melhor construído, mais denso. Quanto mais produtos assim forem ao ar, menos o público vai rejeitar, pois ele vai se acostumar a também pensar diante da TV. Não dói.