Quando se é profissional de qualquer área sabe-se que é preciso evitar os vícios. A maturidade profissional somente chega conforme vamos trabalhando. É o tempo que provoca isso, porém, ele também traz uma série de vícios e atalhos que quase sempre precisam ser enxergados antes de se produzir novamente, a fim de que o novo trabalho não saia prejudicado.
Criar receitas e modelos pode ser uma boa saída para evitar fracassos, principalmente num universo como o da TV brasileira em que o telespectador ainda é tão tradicional. Porém, é preciso saber o momento exato de inserir cada um dos ingredientes dessa receita, caso contrário, o prato que outrora foi muito elogiado, pode acabar sendo alvo de críticas justas simplesmente porque um ingrediente foi colocado no momento equivocado.
Foi o que se viu na atual novela das 21 Horas, um ingrediente estragado. Fato é que, por si só, o que foi ao ar até agora mostra que Salve Jorge não é uma novela ruim, longe disso. Glória Perez parece ter pesquisado bastante todos os temas antes de decidir colocá-los como núcleos de sua obra, pois todas as histórias são bem completas e redondas.
Enquanto o amor inocente e excessivamente meloso do casal de protagonistas faz fãs e haters pelo Brasil, enquanto a história dos policiais em trabalho de pacificação da favela, enquanto a história da própria favela, enquanto o núcleo um tanto quanto cômico da família que disputa uma herança, enquanto todas estas histórias tem momentos agradáveis e interessantes, rouba a cena o núcleo forte e muito bem desenvolvido do tráfico de mulheres.
Este é, sem dúvida, o maior acerto da autora neste roteiro - e um dos melhores que ela já desenvolveu ao longo dos anos. A força dessa história faz com que tudo gire em torno dela. Ainda que seja um núcleo que ainda não se aproximou dos protagonistas - mas sabe-se que vai - acabou roubando a cena por ser muito mais forte, denso e interessante, do ponto de vista artístico.
Por outro lado, Glória Perez é o melhor exemplo de criadora de receitas. Desde que entrou para o time de autores das 21 Horas ela mantém um formato em seus roteiros. Sempre fazendo um paralelo entre o Brasil e um país com cultura completamente diferente, ela conseguiu atrair a atenção do telespectador com isso e formar sua marca para fazer novelas. E sempre funcionou porque sempre foi bem amarrado com o roteiro. Até agora.
Em O Clone a protagonista Jade (Giovana Antonelli) era muçulmana, ou seja, mostrar a cultura daquele povo era parte primordial do roteiro. Em América, o sonho de Sol (Débora Secco) era o de muitos brasileiros da época, deixar o Brasil e construir uma vida no exterior com oportunidades melhores. Ou seja, a história da protagonista era entrar na América e mostrar a cultura, os percalços e caminhos fazia todo sentido. Em Caminho das Índias Maya (Juliana Paes) era indiana, portanto, tal qual na primeira novela, era necessário mostrar a cultura da Índia.
E Istambul serve para que em Salve Jorge? A protagonista Morena (Nanda Costa) foi inserida no núcleo da favela, o protagonista Théo (Rodrigo Lombardi) é policial, também brasileiro. Não há a menor necessidade de se mostrar a cultura do povo de Isambul na novela. Você pode justificar que a boate de Lívia (Cláudia Raia) com as mulheres traficadas irá se alojar, como já está ocorrendo, naquele local, mas e daí? Nas 04 primeiras semanas da novela, a boate foi em Madrid, nem por isso houve necessidade de se inserir personagens espanhóis e mostrar as tradições daquele país.
Ainda que, em algum momento, as personagens que residem em Istambul acabem se interligando de alguma forma com a protagonista - o que parece improvável - não há razão de existir este núcleo. Bastava inserir as personagens no momento em que eles fossem fundamentais para fazer a história caminhar. Até o momento, o local funciona como um núcleo solto, uma espécie de merchan turístico que não tem nenhuma ligação com o restante da novela.
Glória Perez criou uma receita e seus bolos sempre deram bons resultados. Ela foi tentando manter a fórmula a cada novo trabalho e, ao menos a tentativa de inserir uma nova cultura para o telespectador brasileiro, funcionava e, sempre em algum momento, essa nova cultura virava febre.
Em Salve Jorge a receita foi mantida, mas, ao deixar personagens secundários e sem nenhum vínculo com o núcleo principal, a história de uma nova cultura não faz o menor sentido. Soa desinteressante ouvir os bordões, ver as danças e conhecer a história de Istambul. Dessa vez, o ingrediente estava estragado e vem prejudicando toda a receita.