segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Cara do Brasil no Horário Nobre

Não, eu não vou comentar Vale Tudo. Toda vez que falamos sobre o retrato do Brasil na teledramaturgia, imediatamente nos remetemos à trama escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basséres. Acontece que, dois anos antes, o horário nobre plantou a semente do que foi discutido com tanta propriedade em 1988, com as histórias de Raquel (Regina Duarte), Fátima (Glória Pires) e Odete Roitman (Beatriz Segall). Em 1986, Lauro César Muniz, um dos maiores autores brasileiros, escreveu o sucesso Roda de Fogo.


Em meados dos anos 80, a Rede Globo fundou a Casa de Criação Janete Clair, com o objetivo de produzir sinopses a serem realizadas pela emissora. Infelizmente, essa foi uma iniciativa que não deu muitos resultados. Um dos únicos foi Roda de Fogo, novela que acabaria sendo escrita por Lauro César Muniz com a colaboração de Marcílio Moraes e direção geral de Dênis Carvalho.

Roda de Fogo apresentava um retrato da elite dominante brasileira, denunciando os crimes dos colarinhos brancos e tocando em temas ainda difíceis, como a tortura na época da repressão. Na novela, Renato Villar (Tarcísio Meira), presidente de um forte grupo empresarial, havia remetido dólares ilegalmente para o exterior. Um dos sócios do grupo, Celso Rezende (Paulo José), ao descobrir que estava sendo traído, envia documentos comprometedores ao juiz Marcos Labanca (Paulo Goulart), denunciando Renato e seus cúmplices. Renato manda matar Celso e faz chantagem com o juiz que, acuado, abandona o Brasil. Antes de partir, deixa os documentos nas mãos de sua ex-aluna, a incorruptível juíza Lúcia Brandão (Bruna Lombardi). Renato se envolve com Lúcia, tentando assim colocar as mãos nos documentos. Enquanto essa trama ocorre, o público conhece Pedro (Felipe Camargo), filho bastardo de Renato, que ele tivera com Maura Garcez (Eva Wilma), uma ex-guerrilheira política. Devido a traumas causados pela tortura, Maura foi obrigada a fazer um complicado tratamento psiquiátrico na Itália, abandonando o filho nas mãos da avó, Joana (Yara Cortes).

O relacionamento entre Pedro e Renato é problemático, já que o empresário não permite que Maura volte para o Brasil. Nesse panorama, pode-se perceber que Renato controla todos que estão à sua volta e faz com que tudo siga da forma que quer. Acontece que Renato é diagnosticado como portador de um angioma, uma bolha de sangue no cérebro. Caso a bolha exploda, Renato morre. Para piorar, o protagonista descobre que nenhum tipo de cirurgia pode salvá-lo. Ele tem, no máximo seis meses de vida. A partir daí, surge um novo Renato. Ele resolve aparar todas as pontas de sua vida. Deixa de dar importância aos documentos, abandona a mulher, Carolina (Renata Sorrah), e se entrega a uma verdadeira história de amor com Lúcia. Ainda traz Maura de volta da Itália e passa a tentar conquistar o amor do filho, Pedro. Seus aliados, sem saber o que está acontecendo, reagem, dando um golpe em Renato. Ele então resolve se vingar, arquitetando a morte de todos que o traíram.

Com essa história, Lauro César Muniz apresentou uma das melhores novelas da televisão brasileira. Com trama forte, bem amarrada, sem barrigas e contando com personagens contraditórios e interessantes, Roda de Fogo deu um passo à frente na forma de se fazer telenovelas no Brasil. Não que o folhetim não estivesse presente ou que os romances tivessem sido deixados de lado, eles estavam lá, mas vestidos com roupagem moderna, atualizada, se enquadrando na realidade social do país.

A história profissional de Lauro César Muniz, autor combativo de teatro e responsável por novelas emblemáticas como Escalada (1975) e O Casarão (1976), emprestou à trama da Rede Globo, características de denúncia de uma série de situações políticas e sociais que, talvez nas mãos de outro autor, a história não conseguisse desenvolver. A inclusão de uma ex-guerrilheira política, enquanto ainda vivíamos em anos de ditadura, foi de uma coragem ímpar, principalmente quando ela se reencontra com seu torturador, Jacinto (Cláudio Curi), atual mordomo e amante de Mário Liberato (Cecil Thiré), o antagonista de Renato. Mário, sabendo da antiga “profissão” de Jacinto, usa o mordomo para aterrorizar Maura e assim
atingir Renato. Aliás, Mário Liberato é um dos grandes vilões da história da teledramaturgia. Cecil Thiré, Eva Wilma, Renata Sorrah e Tarcísio Meira brilharam na novela, defendendo personagens que estão entre os mais importantes de suas carreiras. Um verdadeiro duelo de titãs.

Sem dúvida alguma, coloco Roda de Fogo no meu pedestal das telenovelas. Pode não ser a minha preferida emocionalmente, mas sem dúvida a considero a melhor que já vi. Uma novela em que tudo deu certo, e como disse no início, semente para que tais temas fossem discutidos mais amplamente em 1988, em Vale Tudo. Lembranças de uma época em que a televisão tinha boas histórias para contar.

Por Walter de Azevedo

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